SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número1A COOPERAÇÃO ENTRE OS STAKEHOLDERS E O DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO DOS TERRITÓRIOS RURAIS – O CASO DA SUB-REGIÃO DO BAIXO ALENTEJO (ALENTEJO - PORTUGAL)SATISFAÇÃO DE RESIDENTES COM SEU LUGAR: DEFINIÇÃO E PROPOSTA DE UMA ESCALA DE MENSURAÇÃO DE MÚLTIPLOS ITENS índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Turismo : Visão e Ação

versão On-line ISSN 1983-7151versão impressa ISSN 1415-6393

Tur., Visão e Ação vol.18 no.1 Balneário Camboriú Jan./Abr. 2016

http://dx.doi.org/10.14210/rtva.v18n1.p60-82 

Artigos

TURISMO, VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS E PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO EM GAROPABA (SC)

TOURISM, ARCHAEOLOGICAL REMAINS AND DEVELOPMENT PERSPECTIVES IN GAROPABA (SC)

TURISMO, VESTIGIOS ARQUEOLÓGICOS Y PERSPECTIVAS DE DESARROLLO EN GAROPABA (SC)

Viegas Fernandes da Costa1 

Clóvis Reis2 

1Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IF-SC) Mestrando em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB) Esp. em Estudos Literários (FURB), Grad. em História (FURB) viegas.costa@ifsc.edu.br

2Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau (PPGDR/FURB) Dr. em Comunicação (Universidad de Navarra/Espanha) Grad. em Comunicação Social (IBES) clovis@furb.br

Resumo

O artigo propõe o debate a respeito dos vestígios arqueológicos pré-coloniais remanescentes no município de Garopaba (SC), e suas possibilidades na promoção do desenvolvimento sustentável por meio do turismo arqueológico. A partir de uma discussão teórica das dimensões política, ideológica e econômica dos processos de patrimonialização e do entendimento das dimensões do desenvolvimento sustentável apresentadas por Sachs, compreende-se o patrimônio cultural (e, por extensão, o arqueológico) como componente fundamental para uma perspectiva de desenvolvimento que não seja teleológica e economicista. É neste sentido que se apresenta a proposta do turismo arqueológico, potencialmente capaz de contribuir para alternativas de trabalho e renda e para a proteção e preservação dos sítios arqueológicos existentes na região.

Palavras-Chave:  Desenvolvimento Sustentável; Turismo Arqueológico; Patrimônio Arqueológico Pré-colonial

ABSTRACT

This article proposes a debate on the pre-colonial archaeological remains in the town of Garopaba (SC), and the possibilities of their use to promote sustainable development through archeological tourism. Based on a theoretical discussion of the political, ideological and economic processes of patrimonial protection, and the understanding of the dimensions of sustainable development presented by Sachs, the cultural heritage (and, by extension, the archaeological heritage) is seen as a key component for a development perspective that is not teleological and economist. It is in this sense that the proposal of archaeological tourism is presented, as having the potential to create alternative employment and income, while protecting and preserving the region’s archaeological sites.

Keywords:  Sustainable Development; Archaeological Tourism; Pre-Colonial Archaeological Heritage

Resumen

Este artículo propone un debate respecto a los vestigios arqueológicos precoloniales remanentes en el municipio de Garopaba (SC) y sus posibilidades en la promoción del desarrollo sostenible por medio del turismo arqueológico. A partir de una discusión teórica sobre las dimensiones políticas, ideológicas y económicas de los procesos de patrimonialización y de la comprensión de las dimensiones del desarrollo sostenible presentadas por Sachs, se entiende el patrimonio cultural (y por extensión el arqueológico) como componente fundamental para una perspectiva de desarrollo que no sea teleológica y economicista. En este sentido se presenta una propuesta de turismo arqueológico potencialmente capaz de contribuir con alternativas de trabajo e ingresos y para la protección y preservación de los sitios arqueológicos existentes en la región.

Palabras Clave:  Desarrollo Sostenible; Turismo Arqueológico; Patrimonio Arqueológico Precolonial

Introdução

O presente artigo propõe um debate sobre o aproveitamento dos vestígios pré-coloniais remanescentes em Garopaba (SC) para a promoção do turismo arqueológico e o desenvolvimento territorial sustentável. Localizado no litoral centro-sul do Estado, o município baseia a sua atividade econômica no turismo de verão. Tal característica leva a população local a viver de empregos informais e concentrados na temporada de dezembro a março, quando ocorre o pico no movimento de visitantes, cuja dinâmica produz implicações ambientais, sociais e urbanas.

Partindo de uma discussão teórica sobre as dimensões política, ideológica e econômica dos processos de patrimonialização e de uma reflexão a respeito das dimensões do desenvolvimento sustentável de Sachs (2006), o trabalho compreende o patrimônio cultural - e, por extensão, o arqueológico - como um componente fundamental para uma perspectiva de desenvolvimento que não seja teleológica e, tampouco, se reduza aos aspectos econômicos.

Nesse contexto, o artigo se estrutura do seguinte modo. Inicialmente, realiza uma revisão bibliográfica que fundamenta a relação entre o turismo arqueológico e as perspectivas do desenvolvimento sustentável. Ressalte-se o fato de que o turismo arqueológico constitui um campo de estudos ainda recente no Brasil, especialmente em Santa Catarina, principalmente pelas razões apontadas em Funari, Manzato e Alfonso (2013), e em Bueno (2011).

Num segundo momento, o trabalho expõe os dados correspondentes aos sítios arqueológicos de Garopaba. A apresentação funda-se nos resultados de uma consulta ao Cadastrado Nacional de Sítios Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CNSA/IPHAN) e nas observações empíricas coletadas a partir de uma pesquisa de campo. A atividade in loco ocorreu por meio de visitas aos sítios arqueológicos e entrevistas a moradores dos seus entornos durante o ano de 2014 e no primeiro semestre de 2015. No seu conjunto, a exposição identifica aspectos importantes para a constituição de atrativos turísticos, como os requisitos de acessibilidade e monumentalidade das atrações, entre outros.

Na última parte, o artigo faz uma reflexão sobre a potencialidade dos vestígios arqueológicos de Garopaba para a implementação de uma nova modalidade de turismo no município, complementar às iniciativas já consolidadas, fundadas no binômio sol e mar. Em suma, acredita-se que o referido patrimônio contribua para a criação de novas perspectivas de desenvolvimento local, as quais sejam sustentáveis, ofereçam alternativas de trabalho e renda e fomentem a proteção e a preservação do patrimônio cultural remanescente na região.

O VESTÍGIO ARQUEOLÓGICO COMO PATRIMÔNIO

Toda discussão a respeito do patrimônio cultural material e/ou imaterial deve considerar sua dimensão política, econômica e identitária. Se, por um lado, o Brasil herdou a tradição latina de patrimônio, que “considera a propriedade privada sujeita a restrições, derivadas dos direitos dos outros ou da coletividade em geral” (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 17-18), por outro seu reconhecimento estatal e sua proteção por meio de políticas de salvaguarda são regidas por interesses ideológicos, econômicos e identitários. Para ilustrar a questão, cita-se aqui o caso apresentado pelo antropólogo Gilberto Velho, que em 1984 atuou como relator do processo que propôs o tombamento do terreiro de Candomblé Casa Branca em Salvador (BA), destoante da tradição luso-brasileira. A partir desta sua experiência, Velho (2006) discutiu a preservação do patrimônio cultural como ato político, antes mesmo de técnico, e mostrou os conflitos presentes nos processos de tombamento e preservação patrimoniais especialmente nos espaços urbanos, naquilo que chamou de negociação da realidade.

Tombar um patrimônio, ou reconhecê-lo como bem comum, implica atuar sobre o campo simbólico e econômico, conforme se percebe no caso apresentado por Velho. No simbólico, a construção e o reconhecimento de identidades; no plano econômico, o conflito entre interesses públicos e privados. A discussão é extensa, e não se pretende aprofundá-la aqui. Importa ressaltar, entretanto, que no caso específico do patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro o problema não difere. Primeiramente, sua negação. A tradição luso-brasileira à qual se refere Velho carrega em suas bases o cristianismo católico, que acabou influenciando no tipo de relação que se estabelece com o patrimônio arqueológico pré-colonial. O investimento que o Estado brasileiro fez ao longo do século XX na construção de um discurso nacionalista ancorado na tradição luso-brasileiro promoveu na sociedade brasileira a rejeição das culturas précoloniais, vinculadas à ideia do atraso.

(...) há muitos fatores que inibem um engajamento ativo da gente comum na proteção patrimonial. Em primeiro lugar, estereótipos do passado continuam vivos no presente. Os índios tradicionalmente eram considerados ferozes inimigos (...). Atrapalhavam o progresso. (...) A gente comum sente-se alienada tanto em relação ao patrimônio erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. (FUNARI; FERREIRA, 2015, p. 139 e 141).

O investimento em uma identidade nacional de tradição luso-brasileira, associado a longos períodos de Estado autoritário defensor de uma ideia de progresso e Estado Moderno (Estado Novo, Ditadura Militar), conforme discutem Bueno (2011) e Funari, Manzato e Alfonso (2013), teve importantes reflexos na falta de reconhecimento e na destruição de diversos sítios arqueológicos existentes no país, bem como no desenvolvimento de políticas de turismo que desconsideraram o turismo arqueológico. A própria EMBRATUR, criada em 1966 pelo governo militar, surge com o objetivo de conferir ao turismo “uma cara nacionalista e conservadora” (FUNARI; MANZATO; ALFONSO, 2013, p. 42).

No caso de Santa Catarina, especificamente, se por um lado os jesuítas tiveram um papel importante no registro e nas pesquisas dos vestígios das civilizações pré-cabralinas, principalmente na atuação do padre João Alfredo Rohr, que investigou uma grande quantidade de sítios e publicou vários trabalhos relatando e interpretando suas descobertas; por outro, contribuíram para que o reconhecimento destas civilizações ficasse limitado ao aspecto da curiosidade histórica exposta em museus, e não como elemento significativo de composição identitária contemporânea. Para exemplificar este paradoxo, cita-se o caso do “Santinho”:

Na Praia do Santinho, em Florianópolis, até o ano de 1946 os pescadores locais faziam oferendas e rezavam, pedindo proteção e boa pescaria, em frente a uma arte rupestre com o formato de um pequeno santo, que era a figura de um antropomorfo com a cabeça constituída por um círculo concêntrico. Tal “Santinho”, que deu nome à praia, foi arrancado do lugar pelos padres que achavam que aquilo era um sacrilégio e nunca mais foi encontrado. É um caso raro em que um símbolo sagrado pré-histórico continua sendo sagrado até os dias de hoje. (LUCAS, 1996, p.16).

Lucas relata ainda que, após a remoção do “Santinho”, que teria sido levado ao Colégio Catarinense, ligado à ordem dos jesuítas e onde trabalhava João Alfredo Rohr, a comunidade local protestou, cercando o prédio da escola e exigindo a devolução da imagem ao seu lugar original, em claro exemplo de como um vestígio arqueológico pode ser reconhecido como patrimônio comum e elemento de identidade cultural.

O tratamento dispensado ao “Santinho” em Florianópolis vai ao encontro do relato de Gilberto Velho sobre o terreiro Casa Branca, na medida em que em ambos os casos se encontra a disputa pelo simbólico mediada por uma sacralidade considerada espúria pela tradição hegemônica. Tradição que é também ideológica, e que influenciará discursos e práticas de desvalorização do patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro, muitas vezes considerado menor e sem valor, como no caso de Garopaba, onde, ainda segundo Lucas, em 1975 a prefeitura municipal “mandou quebrar a marretadas os amoladores do Costão da Casqueira para aproveitar as pedrinhas negras no calçamento da praça central” (LUCAS, 1996, p. 109). A destruição do Costão das Casqueira insere-se no contexto nacional de destruição de tudo aquilo que pudesse representar atraso em nome do discurso do progresso.

(...) durante as décadas de 1930, 1940, 1950, pouco de fato se conseguiu prevenir a destruição do patrimônio arqueológico, em especial de sambaquis, utilizados como matéria prima para produção do cal necessário para garantir o crescimento urbano das grandes cidades que se formavam, principalmente na região sudeste/sul do país. (BUENO, 2011, p. 59).

Cabe ressaltar, portanto, que o patrimônio cultural e, neste, o arqueológico, não está dado em si, na medida em que resulta das relações de poder que o resignificam. Deste modo, os vestígios do passado, para serem considerados patrimônio, ficam sujeitos a um processo de “seleção consciente do que se deseja legar ao futuro, que mostra que algo é valioso individualmente ou socialmente” (GUIMARÃES, 2012, p. 6).

A patrimonialização como resultado das relações de poder ajuda a explicar, por exemplo, a pequena quantidade de sítios arqueológicos tombados no Brasil, o baixo investimento na pesquisa arqueológica e o abandono ao qual muitos sítios estão relegados. Vestígios arqueológicos passam à condição de patrimônio a partir do momento em que são apropriados pela comunidade e/ou pelo aparato burocrático-estatal como bens comuns aos quais são conferidos sentidos e, muitas vezes, funções. O tipo de sentido e função conferidos ao patrimônio cultural arqueológico resulta também das disputas em torno das diferentes perspectivas de desenvolvimento. Najjar e Najjar (2006), ao discutirem o papel educativo do IPHAN, identificam neste o principal sujeito institucional na preservação do patrimônio arqueológico brasileiro. Entretanto, “apesar de a Lei que cria o Instituto reconhecer a Arqueologia como produtora de uma memória da nação (...), ela, de fato, nunca foi apropriada como tal” (NAJJAR; NAJJAR, 2006, p. 179). A razão disto, segundo os autores, é justamente o fato de a arqueologia brasileira dedicar-se principalmente à investigação das sociedades pré-coloniais e seus vestígios, e de que o reconhecimento da participação destas sociedades na constituição da cultural nacional não é uma prioridade dos órgãos de cultura brasileiros. Ou seja, é a questão política que relega os sítios e os vestígios arqueológicos brasileiros ao abandono e à destruição, atendendo a interesses simbólicos e econômicos restritos.

O Iphan, ao preservar a memória e, assim, participar da construção da ideia de nação brasileira, está realizando uma tarefa acadêmica e educativa que não deve ser vista como responsabilidade restrita de um pequeno grupo de técnicos. A pretensa neutralidade técnica esconde as relações de força, de poder simbólico (BOURDIEU, 1989), que está por trás da definição do que é o Brasil e de quais são as memórias legítimas – e, portanto, quais são as ilegítimas – para a construção dessa definição. (NAJJAR; NAJJAR, 2006, p. 179).

No Brasil, as discussões acerca do patrimônio cultural e, de forma mais recente, do patrimônio arqueológico, reforçaram-se a partir das possibilidades de trabalho e renda que seu aproveitamento pode representar, principalmente por meio do turismo cultural. Daí a necessidade de se compreender o reconhecimento do patrimônio arqueológico, sua valoração e sua apropriação pela comunidade como patrimônio cultural e a partir dos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento, de modo que sua exploração (quando e onde esta for estimulada) ocorra a partir das dimensões do desenvolvimento sustentável, ou ecodesenvolvimento, apresentadas por Sachs (2006a).

PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO E DESENVOLVIMENTO

Discutir a relação entre patrimônio arqueológico e desenvolvimento é tarefa complexa, primeiramente porque não há consenso a respeito do conceito de desenvolvimento, mesmo quando delimitado por categorias, como a de “sustentável”. Ortiz (2008), ao tratar do hiato existente entre os debates sobre desenvolvimento e políticas culturais, alerta que o termo desenvolvimento pode encobrir realidades que se excluem e, portanto, a primeira questão a ser colocada diz respeito a que tipo de desenvolvimento se está referindo. Isto porque, usualmente, compreende-se o desenvolvimento como movimento teleológico.

Esta percepção do desenvolvimento, cujo sentido comumente filia-se à noção de progresso econômico, tecnológico e de valores políticos, como o da democracia, por exemplo, é, segundo Ortiz, uma invenção da modernidade (atrelada ao Ocidente) e não se aplica às sociedades ocidentais antigas. Na antiguidade, as categorias eram claramente definidas, como as de “civilizado” e “bárbaro”, de modo que o contato entre elas implicava choques, o que difere da concepção de desenvolvimento, que indica movimento, apesar de considerar estados da sociedade como estágios. Ou seja, “o que se encontra na etapa primeira é vista como incompleto em relação ao que se situa acima dele” (ORTIZ, 2008, p. 125). Assim, a preocupação, então, passa a ser propor uma reflexão que seja diferente da perspectiva teleológica, que concebe a ideia de desenvolvimento como algo que obedece a um sentido único e a modernidade como uma categoria absoluta. Por isso, ao tratar a modernidade em sua multiplicidade, Ortiz defende que o desenvolvimento é inerente às sociedades modernas, das quais não se pode escapar.

A partir da década de 1960, as grandes alterações ambientais promovidas pela ação humana e os riscos de um conflito bélico generalizado alertaram para a necessidade de se discutir o modelo de desenvolvimento hegemônico. Neste sentido, durante a segunda metade do século XX, é possível elencar três principais marcos internacionais para esta discussão: a Conferência das Nações Unidas em Estocolmo (1972), o Relatório Brundtland (1987) e a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (1992). Nestes marcos a ideia de sustentabilidade começa a ser apresentada como alternativa de desenvolvimento. No Relatório Brundtland, por exemplo, compreendeu-se por desenvolvimento sustentável aquele que atende as necessidades da geração presente, garantindo que as gerações futuras disponham dos recursos para atender as suas. Este mesmo documento, segundo Cooper et al. (2007), arrolou os princípios básicos da sustentabilidade, dentre os quais está a proteção da herança cultural humana. Faz-se este destaque por integrar o patrimônio arqueológico a esta “herança cultural humana”, na medida em que se configura como categoria do patrimônio cultural. Este mesmo princípio já estava presente na Conferência Geral da Unesco de 1972, na qual foi adotada a primeira convenção referente ao patrimônio mundial, cultural e natural e se começou a considerar os patrimônios da humanidade como bens comuns a todos os povos do mundo (FUNARI; PELIGRINI, 2006).

Diante da possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, se mantidos os hábitos de consumo e o crescimento demográfico, Sachs (2006a) propôs discutir as possibilidades do ecodesenvolvimento, ou desenvolvimento socioeconômico equitativo, também chamado de desenvolvimento sustentável. Seu principal objetivo foi contestar um modelo de desenvolvimento ancorado exclusivamente no crescimento econômico, defendido pela economia de mercado, e propor um modelo de desenvolvimento preocupado com o desenvolvimento social e equitativo em níveis globais. Assim, insistiu na necessidade da dimensão ecológica como garantia para a sobrevivência humana e, principalmente, que o desenvolvimento qualitativo deve liberar recursos dos países mais ricos para os mais pobres. Alertou para os riscos de se superestimar o desenvolvimento tecnológico, de modo que a transição para o ecodesenvolvimento deveria ser imediata. Para Sachs, este ecodesenvolvimento do qual trata possui cinco dimensões: sustentabilidade social, sustentabilidade econômica, sustentabilidade ecológica, sustentabilidade espacial (equilíbrio rural – urbano) e sustentabilidade cultural (SACHS, 2006a, p. 181-182). Como forma de ação, defendeu que uma estratégia de desenvolvimento só tem sucesso se contar com a participação dos grupos e das comunidades locais.

Em 1995, a pedido da UNESCO, Sachs escreveu o artigo (2006b) que serviu de material preparatório para o encontro de cúpula dos Chefes de Estado, convocado pela ONU e realizado em Copenhague. Neste artigo, Sachs apontou novamente para a necessidade de um desenvolvimento cujo foco principal não seja a economia, mas o ecológico e o social, e defendeu a necessidade de se pactuar valores éticos universais capazes de assegurar a sustentabilidade da vida, o uso da ciência e da tecnologia para garanti-la, e o papel do Estado como regulador e fomentador de políticas relacionadas ao desenvolvimento. Argumentou para a necessidade de se construir novos paradigmas de desenvolvimento que tenham como centro o bem-estar de todos, passando pela superação do economicismo. As bases para este novo paradigma de desenvolvimento, segundo Sachs, são a prudência ecológica, a solidariedade para a equidade, a eficiência econômica e “o social no comando, o ecológico enquanto restrição assumida e o econômico recolocado em seu papel instrumental” (SACHS, 2006b, p. 266). Além disso, o autor defendeu uma nova distribuição espacial que promovesse empregos no campo. Empregos estes não apenas voltados para a agricultura.

Em síntese, as proposições de Sachs para o desenvolvimento sustentável sustentam uma série de reflexões e propostas de desenvolvimento que têm, como fim último, o princípio da sustentabilidade baseada no protagonismo dos sujeitos a partir de seus territórios locais.

Segundo Mielke e Gandara (2009), no contexto de um mundo globalizado, que gerou processos de flexibilização e descentralização, é possível perceber um movimento de endogenização das perspectivas de desenvolvimento, no qual o território começou a ser visto como agente de desenvolvimento. Neste debate, a atividade turística passa a ser compreendida “não somente como ator coadjuvante, mas também como ferramenta de fomento de geração de renda e emprego para as comunidades locais. Ou seja, tem sido visto como instrumento estratégico de desenvolvimento econômico” (MIELKE; GANDARA, 2009, p. 86).

A relação entre turismo e desenvolvimento econômico endógeno é compartilhada por diversos autores, dentre estes, Brenner (2005), que, ao discutir o turismo cultural, chama a atenção para a contribuição desta modalidade de turismo no desenvolvimento endógeno de uma comunidade, não apenas porque valora economicamente o patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial, mas porque se apresenta como promotor da sustentabilidade no processo de desenvolvimento. Sustentabilidade relacionada não apenas aos aspectos materiais (estruturais e infraestruturais), mas também aos simbólicos, dentre os quais a valorização da memória histórica como importante elemento constituidor de identidade. Ressalta-se também que um turismo que parte do patrimônio cultural de determinado território, “representa um método de desenvolvimento turístico sustentável porque respeita o patrimônio de uma área e habilita seus habitantes, gerando uma base verdadeira para o desenvolvimento” (BRENNER, 2005, p. 367).

A proposição de um turismo arqueológico convida a olhar para o debate travado no âmbito do saber arqueológico, de modo a se observar como seus profissionais estão compreendendo seu papel social, e de que modo a relação turismo – arqueologia pode ser (ou/e é) recebida por estes. Neste sentido, recorre-se a Bastos (2008) que, ao analisar as atividades desenvolvidas pelos arqueólogos na Zona da Mata Mineira, tece observações a respeito da relação entre a arqueologia e o desenvolvimento regional.

Bastos (2008) chama a atenção para uma “nova arqueologia brasileira”, preocupada em “modificar realidades locais através da sua práxis educativa, participativa e inclusiva”. A gênese desta nova arqueologia estaria nos Estudos de Impacto Ambiental, e hoje se estende amplamente, convocada que é, inclusive, pelos interesses de um mercado globalizado e pelas necessidades de uma arqueologia preventiva. Ao refletir sobre o papel a ser desempenhado pela arqueologia brasileira no desenvolvimento regional, Bastos apresenta seu entendimento de desenvolvimento regional, que consiste no conjunto das “ações e atividades que geram oportunidades de engajamento sociais, econômicas e culturais realizadas no âmbito do território envolvente e que dele tirem proveito de forma direta e/ou indireta” (BASTOS, 2008, p. 7). No referido artigo o autor fala a partir da perspectiva da arqueologia e da prática profissional do arqueólogo, tendo como campo de observação os trabalhos desenvolvidos na Zona da Mata Mineira. Neste contexto, constatou que a aproximação do trabalho do arqueólogo com os municípios valorizou o poder local e fortaleceu ações decididas conjuntamente. Isto porque “os atores sociais têm mecanismos muito mais eficazes de controle e pressão por se encontrarem no município” (BASTOS, 2008, p. 9).

Os atores locais, segundo Bastos, possuem um sentimento de pertencimento, de ser e estar em um lugar, onde estabelecem suas relações sociais. Daí a necessidade de se desenvolver um trabalho “interpessoal, interinstitucional, interdisciplinar, interétnico e transversal que possibilite o exercício pleno dos direitos culturais” (BASTOS, 2008, p.10), avançando para aquilo que Santos (2007) compreende como cidadania cultural. Este trabalho deve ser anterior ao próprio uso turístico do patrimônio arqueológico, na medida em que este só “será instrumento de desenvolvimento turístico após ter sido instrumento de Educação Patrimonial e inclusão social” (BASTOS, 2005, p. 65), de modo a garantir a dimensão da sustentabilidade. É sob a ótica da cidadania cultural que a relação entre o patrimônio arqueológico e o turismo arqueológico concorre para uma perspectiva de desenvolvimento regional que ultrapassa a lógica trabalho e renda.

Neste sentido, Bastos (2008) chama a atenção para a necessidade da arqueologia trabalhar junto às comunidades locais (contribuindo, inclusive, com a formação de agentes locais) e, em especial, aos grupos vulneráveis (resultantes dos efeitos da exclusão social e econômica), fazendo com que a arqueologia contribua com a inclusão social destas comunidades e grupos. Aqui se estabelece um ponto de convergência entre as proposições de Bastos para a arqueologia, e as premissas para o sucesso ou o fracasso do desenvolvimento local, apresentadas por Mielke e Gandara (2009). Segundo estes autores, são premissas para este tipo de desenvolvimento:

Em primeiro lugar, o envolvimento dos atores locais, que têm importância fundamental como protagonistas dos processos. E, em segundo lugar, e não menos importante, as questões organizativas, sociais e políticas dos mesmos, sejam institucionais, públicas ou privadas. (MIELKE; GANDARA, 2009, p. 91-92).

É nesta mesma lógica que Barretto (2009, p. 191), ao discutir o planejamento do turismo cultural/étnico, afirma que “no ato de planejar turismo étnico, deve-se partir do princípio inerente aos direitos humanos de que, em primeiro lugar, quem precisa decidir sobre uma economia baseada no turismo ou não são os membros da comunidade.” Brenner (2005, p. 370) também argumenta neste sentido, afirmando que “todos os esforços para promover o turismo cultural sustentável devem basear-se absolutamente em uma cooperação ativa com as culturas locais”. E Veloso e Cavalcanti, ao discutirem especificamente o turismo arqueológico, escrevem que este:

(...) apresenta-se hoje como um importante veículo de desenvolvimento socioeconômico em diversas localidades além de ser um potencial campo de pesquisas para o conhecimento das populações humanas do passado. Constata-se também que esse pode ser aproveitado como fonte de cidadania cultural. (VELOSO; CAVALCANTI, 2007, p. 166).

Bastos (2008) acredita, portanto, em uma arqueologia que não seja autoritária e que ouça a comunidade local, e defende a participação ativa da comunidade nas diferentes etapas do trabalho arqueológico, a saber: no diagnóstico, na prospecção, na escavação (resgate), na educação patrimonial e nas atividades de laboratório e gabinete. Entende o patrimônio arqueológico como patrimônio cultural de uso comum e de alcance social, e acredita que as mudanças de paradigma que este campo do saber percebeu no Brasil ajudam a explicar o interesse de outras atividades econômicas, dentre estas, o turismo, pelo patrimônio arqueológico. É neste contexto que afirma:

(...) com a grande visibilidade adquirida pela arqueologia no Brasil em função das mudanças operadas nos paradigmas da difusão, comunicação e do ensino da disciplina em outros moldes em algumas instituições mais vanguardistas, sua demanda passou a fazer parte da agenda de outras atividades econômicas e sociais, assim como compareceu de maneira efetiva na atividade turística. (...) Cada vez mais, o Turismo Pós-Moderno recorre aos objetos representativos desses elos afetivos (...), porque os viajantes contemporâneos demandam por relações mais próximas ao cotidiano dos locais visitados. (BASTOS, 2008, p. 15).

Assim, para além de representar alternativa de renda às populações locais dos sítios arqueológicos, o envolvimento destas no turismo cultural/arqueológico deve representar, em primeiro lugar, um processo educativo que a fará olhar para o patrimônio arqueológico de modo a valorá-lo simbolicamente. Esta perspectiva remete às reflexões de Sachs (2006a), Max-Neef (2012) e Sampaio (2005), que defendem como condição para que uma estratégia de desenvolvimento sustentável possa ter sucesso, a participação dos grupos e das comunidades locais como sujeitos do seu próprio desenvolvimento. Já Manzato (2013) alerta para o fato de que, quando explorado exclusivamente em sua perspectiva econômica, o turismo em sítios arqueológicos acaba promovendo desequilíbrios. Conforme Guimarães (2012, p. 54), “para o turismo arqueológico, a busca pela sustentabilidade deve ser no sentido mais amplo do termo, em todos os seus eixos: ambiental, social, econômico e cultural”.

Portanto, a valoração simbólica dos sítios arqueológicos, somada ao trabalho de educação patrimonial e à valoração proveniente de sua potencialidade econômica alternativa como atrativo turístico e aos produtos daí decorrentes, potencializará as possibilidades de preservação dos sítios como lugares de identidade e de renda. Assim, pode-se partir do pressuposto de que um projeto que proponha o investimento turístico tendo como atrativo também os vestígios arqueológicos pré-coloniais existentes no município de Garopaba necessita prever uma relação dialógica entre poder público (gestor local do turismo), federal (IPHAN) e operadores do turismo principalmente com as populações locais, garantidoras da proteção dos sítios e dos valores simbólico/identitários a estes relacionados.

A QUESTÃO EM GAROPABA

Garopaba é um município localizado no litoral centro-sul de Santa Catarina, distante 91 quilômetros da capital Florianópolis, e com uma população atual de aproximadamente 20545 habitantes (IBGE, 2014). Sua principal atividade econômica é o turismo de verão, compreendido entre os meses de dezembro a fevereiro, período em que a cidade recebe grande afluxo de turistas.

Sua fundação remonta ao estabelecimento de uma armação baleeira em 1793, apesar de alguma presença vicentista anterior. As armações baleeiras constituíram-se como o principal empreendimento industrial do período colonial brasileiro no litoral catarinense. É a partir da Armação Baleeira que se intensificou a ocupação de Garopaba, especialmente pelo elemento açoriano, que se dedicou às atividades pesqueiras e agrícolas e, posteriormente, pelo elemento italiano.

Foi no final da década de 1970 que a cidade viu sua explosão demográfica, principalmente pela chegada de representantes da contracultura e surfistas, a maior parte provinda do Rio Grande do Sul. Segundo Alvim (2014), é o momento em que Garopaba passa a ser inserida no discurso da vilegiatura marítima, principalmente por jornais de Porto Alegre e São Leopoldo, que a divulgavam como um lugar em que seria possível escapar da vigilância autoritária dos anos 70. Este movimento de turistas jovens atraídos pela promessa de uma paisagem de liberdade incentiva também a fixação de novos moradores, fazendo com que a população mais que dobrasse entre 1977 e 2014, alterando profundamente a paisagem do município, em seus aspectos físicos, urbanos, identitários e de organização social e econômica. De pequena cidade dedicada à pesca artesanal, à agricultura e ao extrativismo da madeira, Garopaba transformou-se em importante balneário turístico. Sua malha urbana passou a se expandir horizontalmente, avançando sobre áreas até então ocupadas por pastagens e cobertura florestal, e seu centro histórico, antiga armação baleeira em torno da qual se espraiou a antiga vila de pescadores com seu casario de arquitetura com base açoriana e ruas estreitas, é hoje alvo do processo de gentrificação.

Para além das transformações da paisagem urbana, estão as alterações da paisagem cultural. Saberes e fazeres ligados à ocupação de base açoriana perdem espaço. Práticas comunitárias como a farinhada e a pesca artesanal da tainha, importantes elementos identitários, tornam-se cada vez menos comuns no cotidiano garopabense. A forte imigração alterou radicalmente a dinâmica do sistema cultural local.

Conforme apontado por Laraia (1986), a mudança cultural pode ser operada por dinâmicas internas e externas. No contexto específico de Garopaba, as dinâmicas externas, representadas neste caso pela explosão demográfica resultante não de um crescimento vegetativo, mas fundamentalmente do movimento migratório, promoveram uma rápida e intensa reconfiguração da paisagem cultural local a partir da década de 1980, resultando em uma espécie de ruptura entre o cotidiano e as referências simbólicas dos moradores antigos para com as populações recentes, muito mais numerosas, provocando uma espécie de desterritorialização da cultura tradicional.

Naquilo que tange ao patrimônio histórico e cultural de Garopaba, a intensa e recente alteração da paisagem humana local e o processo de gentrificação podem significar a destruição de importantes marcos paisagísticos e simbólicos, bem como a eliminação de saberes, fazeres e sensibilidades tradicionais do município. Isto ocorre não tanto pela irrupção dos recentes elementos culturais exógenos, mas principalmente pela ausência de uma política municipal que garanta o debate permanente e a preservação efetiva do patrimônio cultural local, bem como a inexistência de equipamentos públicos culturais.

Para além dos seus atrativos naturais (praias, lagoas e trilhas), Garopaba dispõe também de importantes vestígios arqueológicos pré-coloniais, cuja presença humana pode remontar a datas anteriores aos 4 mil anos antes do presente, distribuindo-se por diferentes tradições e culturas (Umbu, Humaitá, Sambaquieira, Itararé e Guarani). No Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA/IPHAN) estão registrados sete sítios arqueológicos dentro dos limites municipais, dos quais um apresenta média relevância e quatro deles alta relevância. Há também uma diversidade de tipos de sítios no município: sambaquis, oficinas líticas, sítios ceramistas e um sítio com inscrições rupestres. Além destes setes sítios registrados junto ao CNSA/IPHAN, há uma grande variedade de vestígios arqueológicos pré-coloniais das culturas sambaquieira, itararé e carijó distribuídas pelo território. É muito comum os moradores da região encontrarem objetos líticos e sepultamentos quando aram a terra ou cavam o solo para construir os fundamentos das casas.

Quadro 1 – Sítios arqueológicos de Garopaba (SC) cadastrados no IPHAN 

Sítio Tipologia Relevância Propriedade Exposição Vestígios Ano do registro
Capão de Garopaba Sambaqui Média Privada Céu aberto Nada consta 1971
Gamboa I Sítio cerâmico Alta Privada Céu aberto Cerâmicos 1965
Gamboa II Sítio cerâmico Nada consta Privada Céu aberto Cerâmicos 1965
Morro do Vigia Oficina lítica Alta Pública Céu aberto Nada consta 1997
Ponta do Galeão Sítio de arte rupestre Alta Pública Céu aberto Gravuras 2002
Oficina lítica da Vigia I Oficina lítica Alta Pública Céu aberto Bacias de polimento e
afiadores em dique de diabásio
2014
Oficina lítica da Vigia II Oficina lítica Nada consta Pública Céu aberto Bacias de polimento 2014

Fonte: CNSA/SGPA (2015).

Uma análise dos dados dos sítios arqueológicos de Garopaba disponíveis no CNSA/IPHAN permite afirmar o potencial destes como atrativo turístico. O primeiro aspecto a ser observado é o regime de propriedade em que estão inseridos. Da totalidade de sítios, quatro estão localizados em áreas públicas, característica que favorece o acesso dos turistas. O segundo aspecto é o da monumentalidade, elemento importante para a constituição do atrativo. Neste sentido, dentre os sítios cadastrados, em quatro deles foram identificados vestígios arqueológicos (cerâmica, inscrição rupestre, bacias de polimento e afiadores), ressaltando-se que três destes sítios possuem como tipologia a oficina lítica. Comerlato (2015), ao discutir as oficinas líticas do litoral central de Santa Catarina, alerta para a dificuldade de preservação desses sítios, impactados pelo intemperismo e pela ação humana. Por outro lado, ressalta seu potencial como atrativo, já que “a disposição das depressões, o aproveitamento da rocha suporte, o brilho do polimento, a simetria das formas, sua relação com a paisagem (...) conferem aos sítios de oficinas líticas um ponto de atração do olhar, sobretudo pela sua qualidade estética” (COMERLATO, 2015, p. 188).

As oficinas líticas estão localizadas junto a praias de grande fluxo de pessoas, como as da Vigia e da Barra. Não há qualquer trabalho de identificação e interpretação das mesmas, tampouco atividades sistemáticas de educação patrimonial das comunidades locais. O fluxo de turistas sobre os vestígios e os saques vêm promovendo o paulatino desaparecimento destes vestígios. O mesmo ocorre com o sambaqui da localidade denominada de Barra. Sambaquis são marcos arquitetônicos construídos pelos povos sambaquieiros há até mil anos antes do presente, e depois ocupados por povos ceramistas. Edificados com conchas acumuladas sistematicamente por diversas gerações, guardam em seu interior sepultamentos, utensílios líticos e ósseos e vestígios de vida cotidiana. O sambaqui da Barra está bastante destruído e saqueado, e abriga trilhas utilizadas sem qualquer controle ou estudo de impacto por turistas e moradores locais.

Já na Ponta do Galeão, importante paisagem turística da cidade, que apresenta monólitos esculpidos pela ação do intemperismo, trilhas e grandes paredões rochosos junto ao mar, encontra-se um sítio arqueológico classificado no IPHAN como de alta relevância, e que apresenta inscrições rupestres. Este sítio integra uma área que se estende da Ilha de Santa Catarina a Garopaba. Prous (1992), ao tratar dos sítios rupestres da “tradição litorânea catarinense”, encontrados nesta área, afirma que “esta tradição, muito bem circunscrita, não pode ser comparada com nenhum outro conjunto rupestre conhecido atualmente; trata-se certamente de uma criação local” (PROUS, 1992, p. 513). A constatação de Prous reforça a importância dos estudos destas inscrições rupestres, cujos autores e significados permanecem ainda indeterminados, bem como seu potencial de atrativo para o turismo arqueológico na região. A despeito de sua importância, a ausência de fiscalização e de controle do acesso ao sítio, torna-o suscetível aos atos de vandalismo, como já foi apontado (COSTA, 2014a). Segundo Comerlato,

(...) as gravuras rupestres também podem ser vistas como um atrativo turístico, movimentando um mercado ainda pequeno – o do turismo cultural, mais precisamente arqueológico. O interesse turístico tem crescido nos últimos anos tanto no litoral como na serra catarinense, existindo iniciativas de prefeituras e de particulares. (COMERLATO, 2005, p. 161).

Atualmente não há qualquer trabalho de proteção dos sítios arqueológicos localizados no município de Garopaba, que estão expostos ao intemperismo, ao turismo de massa e desordenado, à expansão urbana e às ações de vândalos, conforme já apontado em outro trabalho (COSTA, 2014a).

Ressalte-se ainda que o desconhecimento a respeito da existência e da importância dos vestígios arqueológicos de Garopaba constitui-se também como elemento de risco para sua preservação. Em pesquisa censitária realizada com professores da rede municipal de ensino de Garopaba (COSTA, 2014b), verificou-se que 59% destes profissionais afirmam conhecer os vestígios arqueológicos/ pré-históricos existentes no município. Ainda que o percentual indique a maioria dos professores, é alto o número que desconhece estes vestígios arqueológicos (41%), principalmente se se considerar o fato de que alguns destes sítios, como as oficinas líticas e o sambaqui já citados, estão localizadas em áreas de fácil acesso e em locais de grande circulação de pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para muitos, o argumento do turismo arqueológico como promotor de preservação dos sítios e dos vestígios arqueológicos pode soar como uma espécie de desculpa para incrementar exclusivamente a economia do turismo no âmbito local. Barreto (2007), entretanto, demonstra, por meio de uma série de exemplos distribuídos no Brasil e em diversos países, como o turismo cultural contribuiu para o fortalecimento e para a promoção de identidades locais e atividades tradicionais e para a preservação de patrimônios materiais e imateriais em processo de destruição e desaparecimento, não fosse sua apropriação pelas comunidades locais a partir da valoração destes patrimônios por meio da atividade turística. Embora muitas vezes o investimento no turismo cultural promova a fetichização de manifestações culturais ou, em outros termos, a “disneyficação” da cultura e a imposição de uma identidade em detrimento às demais, quando planejado em diálogo com as comunidades locais, esta segmentação turística garante a preservação do patrimônio cultural e fomenta, a partir das forças endógenas, a economia local e o próprio reconhecimento das identidades locais.

Outro elemento importante a ser considerado está relacionado ao perfil do turista do turismo cultural, já que este, diferentemente do turista do turismo de massa (que atualmente representa o principal investimento da economia do turismo em Garopaba), tende a impactar menos na realidade local naquilo que diz respeito aos aspectos da degradação da sociedade receptora e seus atrativos. É o que defendem Cooper et al. (2007, p. 280), quando afirmam que “(...) os turistas que pertencem a grupos de charter ou de massa, provavelmente terão um impacto social e cultural maior que aqueles que pertencem às categorias de turistas exploradores, aventureiros e étnicos.”

Levando em conta os aspectos teóricos e a caracterização do espaço e dos vestígios arqueológicos remanescentes no município de Garopaba aqui apresentados, tornam-se possíveis algumas proposições.

A primeira delas diz respeito à necessidade de se considerar a presença de vestígios arqueológicos pré-coloniais importantes nos limites na discussão de um modelo de desenvolvimento sustentável para o município. Estes vestígios integram o patrimônio paisagístico da cidade, que precisa ser preservado. O modelo de desenvolvimento econômico atual, entretanto, estruturado sobre a sazonalidade do turismo “sol e mar” não assegura a sustentabilidade, promovendo impactos ambientais, sociais e identitários significativos e estimulando a gentrificação.

A segunda proposição diz respeito ao intenso e não planejado crescimento populacional. A constatação implica a necessidade de trabalhos de educação patrimonial como meio de desenvolver a cidadania cultural e o reconhecimento de uma identidade local capaz de dialogar com os elementos exógenos sem se destruir. Este trabalho de educação pode e deve considerar os vestígios arqueológicos pré-coloniais, contribuindo para a sua patrimonialização, interpretação e incorporação às narrativas locais. Cabe lembrar que a educação patrimonial como mecanismo de empoderamento da população local e de fortalecimento da cidadania cultural é condição primeira para o desenvolvimento de qualquer atividade turística que explore sítios e vestígios arqueológicos como atrativo (GUIMARÃES, 2012; BASTOS, 2008; FUNARI, 2013).

A terceira proposição considera as possibilidades do turismo arqueológico. Esta segmentação de turismo, por se desenvolver em espaços frágeis e únicos, exige planejamento, interpretação e participação de diferentes atores: poder público local, poder público federal, comunidades locais, entidades privadas e do terceiro setor. Como já apontaram Bastos (2005; 2008), Guimarães (2012) e Manzato (2013), o turismo arqueológico sustentável, se planejado em complementaridade a rotas e circuitos que envolvam diferentes segmentos turísticos, alguns já existentes em Garopaba e região (ecoturismo, turismo de observação de baleias, turismo cívico), e outros identificados potencialmente (turismo rural, turismo étnico, turismo comunitário de base local, turismo gastronômico), pode contribuir para o desenvolvimento territorial sustentável e, por consequência, na resignificação e proteção dos atuais vestígios arqueológicos, alçando-os à condição de patrimônio socialmente reconhecido. O turismo arqueológico em Garopaba pode representar, também, uma alternativa para reduzir à dependência em relação à sazonalidade do turismo de verão e um estímulo à fixação da população local, na medida em que signifique oportunidade de trabalho e renda.

Por fim, considerando a dimensão política e ideológica dos processos de patrimonialização, o debate a respeito dos vestígios arqueológicos pré-coloniais necessita mobilizar as comunidades locais de Garopaba, por meio da articulação destas com os demais atores do território, como as instituições de ensino e de pesquisa com atuação na região, entidades representativas das populações locais e das atividades econômicas tradicionais, organizações do terceiro setor e representantes do trade turístico.

Persistir na promoção do turismo “sol e mar” como a principal estratégia de desenvolvimento no município de Garopaba é persistir em uma estratégia que se comprova insustentável, na medida em que, considerando as categorias apresentadas por Sachs, põe o econômico no comando, desconsidera o ecológico como restrição assumida e coloca o social no papel instrumental, ou seja, não é ecologicamente prudente, socialmente solidário e tampouco eficiente sob o aspecto econômico no longo prazo. A observação dos índices de desenvolvimento humano do município, inferiores à média estadual, é um dos elementos que reforçam esta conclusão. Elementos que se somam à descaracterização identitária, ao desaparecimento das atividades econômicas tradicionais, aos processos de gentrificação e à degradação ambiental.

Planejar o turismo local para além da dependência de um turismo sazonal e de massas, considerando a existência de vestígios arqueológicos pré-coloniais importantes no município e as proposições aqui apresentadas, pode criar as possibilidades para um empoderamento da população local sobre seu território no sentido da construção de perspectivas de um desenvolvimento endógeno sustentável.

REFERÊNCIAS

ALVIM, A. L. Sobre tantas Garopabas: a construção do discurso turístico no litoral catarinense. Rosa dos Ventos, v. 6, n. 2, 2014, p. 217-228. [ Links ]

BARRETO, M. Cultura e Turismo: discussões contemporâneas. Campinas (SP): Papirus, 2007. [ Links ]

BARRETTO, M. A delicada tarefa de planejar turismo cultural. In.: SOUSA, C. M. de M.; THEIS, I. M. Desenvolvimento Regional: abordagens contemporâneas. Blumenau (SC): Edifurb, 2009, p. 181-193. [ Links ]

BASTOS, R. L. Patrimônio cultural arqueológico: instrumento de desenvolvimento turístico. Cadernos do LePAARQ, v. 2, n. 3, p 65-77, jan-jul. 2005. [ Links ]

BASTOS, R. L. O papel da arqueologia no desenvolvimento regional. In. OLIVEIRA, Ana Paula Loures de (Org.) Arqueologia e patrimônio da Zona da mata mineira: Carangola. Juiz de Fora (MG): MAEA/UFJF, p. 7-17, 2008. [ Links ]

BRENNER, E. Uma contribuição teórica para o turismo cultural. Habitus, v. 3, n. 2, p. 361372, 2005. [ Links ]

BUENO, L.de M. Arqueologia, patrimônio e sociedade: quem define a agenda? Revista esboços, v. 18, n. 26, 2011, p. 55-72. [ Links ]

COMERLATO, F. As representações rupestres do estado de Santa Catarina. Revista ohun, v. 2, n. 2, 2005, p. 150-164. [ Links ]

COMERLATO, F. Oficinas líticas do litoral central de Santa Catarina. Cadernos do LePAARQ, v. 12, n. 23, 2015, p. 183-189. [ Links ]

COOPER, C. et al. Turismo: princípios e práticas. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2007 [ Links ]

COSTA, V. F. da. A vandalização do patrimônio arqueológico de Santa Catarina. Expressão Universitária, p. 5, jul. 2014a. [ Links ]

COSTA, V. F. da. O Patrimônio Cultural de Garopaba (SC) na percepção dos professores da rede pública municipal de ensino. Anais do II seminário Internacional História do tempo Presente. Florianópolis, UDESC, p. 1-16, 2014b [ Links ]

FUNARI, P. P.; FERREIRA, L. M. Desafios para a preservação do patrimônio arqueológico no Brasil. In. CAMPOS, J. D. S. (Org.). Patrimônio cultural plural. Belo Horizonte: Arraes, 2015, p. 135-143. [ Links ]

FUNARI, P. P.; MANZATO. F.; ALFONSO, L. P. El turismo y la arqueología en el Brasíl: uma mirada postmoderna. In: WASSLOWSKI, A. H. Arqueología y desarrollo em América del sur. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2013, p. 37-56. [ Links ]

FUNARI, P. P.; PELEGRINI, S. de C. A. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. [ Links ]

GUIMARÃES, A. M. Aproveitamento turístico do patrimônio arqueológico no município de Iranduba, Amazonas. Tese de Doutorado em Arqueologia. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, 2012. [ Links ]

LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. [ Links ]

LUCAS, K. Arte rupestre em santa Catarina. Florianópolis: Rupestre, 1996. [ Links ]

MANZATO, F. Socialização do patrimônio arqueológico no estado de são Paulo: proposta de plano de gestão, interpretação e visitação turística em áreas arqueológicas. Tese de Doutorado em Arqueologia. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, 2013. [ Links ]

MAX-NEEF, M. Desenvolvimento à escala humana: concepção, aplicação e reflexões posteriores. Tradução por Rede Viva. Blumenau (SC): Edifurb, 2012. [ Links ]

MIELKE, E.; GANDARA, J. M. Das teorias “de cima para baixo” e desenvolvimento regional: uma análise crítica no contexto da organização da atividade turística. In.: SOUSA; Cristiane Mansur de Moraes, THEIS, Ivo Marcos. Desenvolvimento Regional: abordagens contemporâneas. Blumenau (SC): Edifurb, 2009, p. 85-112. [ Links ]

NAJJAR, J.; NAJJAR, R. Reflexões sobre a relação entre educação e arqueologia: uma análise do papel do IPHAN como educador coletivo. In.: LIMA FILHO, M. F.; BEZERRA, M. (Orgs.). Os caminhos do patrimônio no brasil. Goiânia: Alternativa, 2006, p. 171-181. [ Links ]

ORTIZ, R. Cultura e desenvolvimento. Políticas Culturais em Revista, v. 1, n. 1, 2008, p. 122-128. [ Links ]

PROUS, A. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. [ Links ]

ROHR, J. A. Sítios arqueológicos de Santa Catarina. Anais do museu de Antropologia, UFSC, Florianópolis, nº 17, p. 77-168, 1984. [ Links ]

SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In. SACHS, I. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2006(a), p. 174-200. [ Links ]

SACHS, I. Em buscas de novas estratégias de desenvolvimento. In. SACHS, I. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2006(b), p. 247-284. [ Links ]

SAMPAIO, C. A. C.Turismo como fenômeno humano: princípios para se pensar a socioeconomia e sua prática sob a denominação do turismo comunitário. Santa Cruz do Sul (RS): Edunisc, 2005. [ Links ]

SANTOS, C. H. Educação Patrimonial: uma ação institucional e educacional. In: IPHAN. Patrimônio: práticas e reflexões. v 1. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 147-172. [ Links ]

VELHO, G. Patrimônio, negociação e conflito. mana, v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006. [ Links ]

VELOSO, T. P. G.; CAVALCANTI, J. E. A. O turismo em sítios arqueológicos: algumas modalidades de apresentação do patrimônio arqueológico. Revista de Arqueologia, n. 20, p. 155-168, 2007. [ Links ]

Recebido: 16 de Setembro de 2015; Aceito: 13 de Novembro de 2015